sábado, 26 de abril de 2008

Morrer? Ou viver tentando?

Se você é um dos poucos que têm acompanhado o blog desde o seu surgimento, certamente terá uma certa sensação de déja vu ao ler o título desse post. Mas não, não estou me repetindo. Em uma leitura mais atenta, pode-se perceber que há uma mudança significativa de sentido entre este e um post anterior.

Esse tipo de olhar aguçado, aliás, é uma das características exigidas pelo jogo Karoshi 2.0, o qual eu descobri através de um comentário de Janos Biro. Assim como em The Unfair Platformer e IWBTG, Kotashi é um jogo que, partindo de uma certa "cultura" estabelecida e compartilhada acerca do gênero "plataforma", promove algumas subversões.

A primeira delas, e a mais significativa, ao meu ver, é no objetivo do jogo. É possível estabelecer um consenso de que, por mais diferentes que sejam os diversos tipos de jogos, nos diversos gêneros, há uma ação que deve ser sempre evitada: morrer. Certo? Bem, com a plataforma em questão, a resposta é não. Em Karoshi, o objetivo do jogador é fazer o personagem a ser comandado justamente encontrar meios de morrer (o que não é uma tarefa fácil!).



Aliás, não é sem propósito que, inclusive, o nome Karoshi remete (segundo pesquisas feitas na própria rede, pois entender Japonês não é uma habilidade desse que vos escreve) a uma idéia de "morrer por excesso de trabalho". Lógico que, como um jogo mais abstrato, a relação entre as performances possíveis no jogo e a idéia do título não é óbvia. Mas ao ver que há, no jogo, uma certa caracterização de um ambiente genérico de trabalho em escritório, somada a um conhecimento geral do papel que a profissão e o esforço produtivo é encarado no Japão, pode-se ensaiar a idéia de estar contida, nesse jogo, uma crítica social à opressão dessa "máquina do trabalho". Aliás, pertinente isso estar em um jogo com ares de "jogo casual", ponderando que esses são oásis em meio ao deserto de tédio de muitos trabalhadores.

Indo ao jogo em si: diferentemente do Unfair Plataformer (e mais próximo ao IWBTG) o Karoshi 2.0 "esconde" por trás do gênero plataforma um verdadeiro exemplar do gênero Puzzle. A resposta nunca é óbvia, porém é de possível percepção através da lógica. A tentativa e erro faz-se presente aqui também, e a divisão em fases curtas estimula o jogador a tentar sobreviver. Depende-se quase nada da habilidade manual do jogador e mais da construção de hipóteses diante do cenário exposto e de - vez ou outra - algumas dicas esparsas.

Porém, até aí (e tirando o fato surpreendente de um jogo ter como objetivo central "morrer") não há nada que diferencie muito o jogo de Puzzles travestidos de plataforma. A descrição acima cabe muito bem, por exemplo, ao Portal, "velho conhecido" dos gamers no universo de jogos casuais. O que há, então de tão intrigante?

Bem, basicamente, a originalidade do jogo está em sua metalinguagem. Jogo metalíngüístico? Como assim? Unfair Platformer era metalingüístico a partir do momento em que, conhecendo as convenções dos objetos em uma plataforma, modificava-as ao seu bel prazer, transtornando o jogador.

Karoshi, por sua vez, de um modo até mais complexo, BRINCA com as convenções do jogo - revisitando conceitos como "fase", "menu", "fim". É difícil explicar sem estragar a surpresa do próprio jogo, mas em poucos exemplos (joguem, colegas, joguem) tentarei explicar o que estou tentando explicitar. Quem não quiser que eu estrague essas surpresas, que jogue primeiro e depois termine de ler... ;)

Primeiro - há uma fase em que é impossível resolver o problema proposto, à primeira vista. A sua obrigação é coletar um número "x" de moedas. Você o faz, e o que acontece? Pedem para coletar mais moedas. Ocorre que, na fase, simplesmente não há mais moedas. Você pode tentar de tudo lá dentro (e provavelmente você vai tentar) até desistir e julgar que fez algo errado e reiniciar a fase. Quando você o faz, qual a surpresa ao ver que as moedas que você coletou permanecem lá (não deveriam) e na soma delas com as que reapareceram na tela, você consegue cumprir seu objetivo.

Outros exemplos: há uma fase pela qual você só passa se voltar em outra fase anterior e fazer outro caminho. Ou seja, a resolução da fase está FORA dela. Ainda - em determinado momento, o MENU do jogo transforma-se em parte de uma fase. Seu personagem caminha pelo menu, o qual, antes, só teria (como em qualquer jogo convencional) o objetivo de selecionar as fases ou sair do jogo.

Enfim, um jogo com esse caráter é interessante porque desnuda certas convenções às quais estamos tão acostumados que naturalizamos. Há filmes que brincam com isso, ou obras de arte (Magritte e seu cachimbo que o digam).


É louvável como um jogo simples e com poucos recursos gráficos e tecnológicos conseguem fazer isso de uma maneira brilhante, ao passo que milhões e milhões em dinheiro são gastos para se fazer mais do mesmo em muitos "gêneros" estagnados da grande indústria. Em certos momentos fico pensando o que poderia acontecer se déssemos metade desse dinheiro para gente que faz jogos como o Karoshi 2.0...

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Artigo sobre jogos e criticidade - link corrigido

Há um tempo, a revista CROP, na qual publiquei o artigo "Cotidianos em jogo: Análise de Jogos Digitais sob uma perspectiva crítica" havia redirecionado os arquivos que a compunham. Eu não me atentei a isso, de início, e o link do artigo, colocado ao lado deste blog, ficou quebrado.

Agora, o link está corrigido. Para quem se interessar sobre o artigo em questão, ou quiser saber do que se trata, coloco aqui seu resumo:


Entendendo ser necessária a aproximação de educadores aos novos letramentos, defende-se aqui que a apropriação do meio digital por educadores engajados criticamente pode trazer benefícios à formação dos jovens. Essa idéia tem como pressuposto a preocupação da educação crítica de expor o educando a situações conflitantes de mundo, colocando em crise assim as crenças e os esquemas interpretativos já estabelecidos. A análise deste artigo tem como foco os jogos digitais e tomou como objeto de estudo o simulador da vida cotidiana The Sims. Verificou-se, previamente, na proposta do software, um conjunto de valores e padrões culturais salientes, como o individualismo, o consumismo e a busca por popularidade. Posteriormente, analisando o jogo em uso, buscou-se descrever, primeiro, como esses valores, em sua concretização virtual, argumentam a favor da visão de mundo previamente assinalada. Em segundo lugar, como o The Sims limita a ação do usuário que opta por caminhos não previstos pela orientação ideológica posta. Tais reflexões demonstram ser elucidativas para a área na medida em que mostram como esse tipo de jogo pode ser uma forte ferramenta tanto para uma visão crítica de mundo quanto para uma veiculação de valores culturais hegemônicos.

Palavras-chave: jogos digitais, educação crítica, novos letramentos


Em suma, é um trabalho relacionado à como é possível detectar e, a partir disso, subverter, os padrões e os discursos estabelecidos em jogos produzidos pela indústria cultural. Afinal, não se pode pensar apenas na criação de jogos indepententes, plenos de reflexão política para gerar um pensamento crítico. É necessário também apropriar-se do que existe da cultura dominante de jogos e destrinchar, desconstruir, subverter, para que existam ainda mais espaços propícios para esse tipo de reflexão social.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

O "manifesto scratchware", parte II, traduzido

Tive a feliz surpresa de o próprio autor da tradução da primeira parte do Manifesto Scratchware - Janos Biro - comentar aqui no blog e anunciar que já realizou a segunda parte da tradução.

Para quem não acompanhou o post anterior sobre o assunto, o Manifesto é uma jóia rara para a cultura gamer. Primeiro, por conta de ser um importante (além de ser um dos primeiros, quiçá, um dos únicos) registros de modos de se pensar jogos politicamente, frente uma inércia existente na produção de jogos com relação à demanda do mercado. Em segundo, pelo próprio interesse do manifesto (e do site que o hospeda, Home of The Underdogs) em valorizar a criatividade e o trabalho artístico dos jogos, e, ainda, a experimentação, a transformação - postura que coaduna com os princípios desse meu blog.

Agora, além de termos acesso, em português, à primeira parte do manifesto, pode-se conferir (e vale muito a pena) a segunda parte, também já traduzida.

Para "sentirem", de antemão, a postura dos autores do manifesto, segue um pequeno, mas representativo trecho:


"Já pensou porque a Exxon, a Microsfot, a Monsanto e todos os seus amigos fazem tantos comerciais sobre o quanto eles são bons? É porque eles tem que esconder a verdade de nós. Vampiros controlam o mundo, em forma de corporações.
[...]Então a indústria de jogos foi pega por este esquema. A grande quantidade de sangue, quer dizer, capital, que é requerida para fazer um jogo hoje significa que mais e mais grupos pequenos de desenvolvedores são forçados a se juntarem à grandes corporações. Ao mesmo tempo, as condições de trabalho só pioram. Palestras de incentivo e motivação são cada vez mais comuns. Lavagem cerebral para fazer os escravos amarem seus mestres vampiros com cada vez mais dedicação."

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Jogos críticos x Jogos bons

No almoço que antecedeu a defesa de meu mestrado, em fevereiro, deu-se uma cena que ficou gravada em minha memória. Estávamos, eu e familiares, num restaurante vegetariano, alternativo, ou algo assim. Daqueles que não tem carne, mas que tem bastante fritura e tempero, com uma leve pitada de culiária oriental.

Pois bem, minha mãe experimenta uma torta de batatas e carne de soja. Logo que vou pegar meu segundo prato, pergunto qual o gosto dessa torta, para ver se compensa eu comê-la. Ao que responde minha mãe:

- Ah, é boa. Levando em conta que é de soja, está gostosa.

***

Essa pequena anedota ilustra um certo posicionamento que, julgo, deve ser a todo custo evitado ao se avaliar algum produto ou artefato. Algo como agregar, de antemão, um valor a mais a um filme mediano por conta dele "ser baseado em fatos reais". E daí? É um filme, ainda, e deve ser analisado como tal.

Temo muito, dentro dessa tentativa de divulgar, exaltar, defender a criação de jogos sérios e, principalmente, de jogos críticos, que se tenha uma certa "clemência" por jogos com "boas intenções", mas que, por um motivo ou outro, fiquem muito aquém do que um jogador pode esperar de um jogo. Externo essa minha preocupação, latente há muito tempo, por conta de uma análise particular do jogo "Deliver the Net" e também pela análise sobre esse mesmo jogo realizada por Ian Bogost no site Water Cooler Games.


O visual, como bem disse Bogost, é atraente e chama a atenção, mas é desperdiçado num jogo em que impera uma lack of depth as a simulated experience (BOGOST). O autor ainda ressalta muito bem que, do modo que foi construído, Deliver the Net acaba mais possuindo um perfil mais de um veículo complexo de divulgação do que um jogo.

Em poucos segundos de interação, isso já pode ser percebido. O objetivo é entregar redes para as famílias em cabanas em um ambiente desértico africano. Para isso, não há desafios ou dificuldades, não há alguma tensão (nem uma mínima, por exemplo, de o protagonista "cair da moto"). A velocidade com que a moto pode andar é sempre a mesma, sempre lenta. Os obstáculos a serem desviados são poucos e fáceis. Não há como não cumprir o objetivo, a menos que se canse do jogo antes (o que é uma grande propaganda contra o próprio site).

Podem espernear, falar de baixos orçamentos, de complicações. Mas exemplos de jogos casuais que têm explodido com sucesso em Kongregates da vida mostram que o buraco é bem mais embaixo. Se há gente boa para fazer um "Fancy Pants", ou similares e colocar na rede, é de se constatar que gente boa existe para fazer coisas legais nessa linha. Por outro lado, há poucas coisas que vêm surgindo que sejam realmente boas e que fujam do par "Persuasive Games" e "Molleindustria".

É de se continuar incentivando esse caminho, que é muito promissor, mas que vem sendo constituído, em grande parte, por tortas de batata com soja.

Em tempo: percebam que, neste post, estou sendo até muito mais básico e superficial do que o Bogost, embora endosse sua opinião. Ele reclama que o jogo não tem profundidade. Eu, dessa vez, só queria que o jogo fosse legal.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Mecânica I - Alavancas, planos inclinados e lápis de cor.

Eu não era dos piores em física. Tampouco dos melhores. É que entender que o vetor tal e qual fazia com que aquela bolinha acelerasse ou diminuísse era muito para a cabeça.

Talvez se, junto com minhas aulas, eu tivesse a experiência de poder brincar com o jogo Magic Pen ou algum similar, eu teria aprendido mais facilmente algumas noções básicas. E, talvez, assim, hoje eu demorasse menos de meia hora para passar de cada fase.
Lógico que, para implementar jogos como esses em ambientes educacionais é preciso ponderar que, por trás dele, há um sistema de algoritmos com premissas sobre o valor da gravidade, da força, do atrito, etc. etc. Claro que é tudo convenção e esse tipo de informação deve ser explicitada. Mas, enfim, convenção por convenção, a gravidade não mede necessariamente 9,8 (ou, em alguns casos) 10,0 m/s² (era essa a medida, não?). E isso não impedia ninguém de achar o resultado das questões de vestibular que tínhamos que fazer, incessantemente.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Vencer? Ou morrer tentando?

Qualquer manual de criação de jogos que se preze vai falar que um bom videogame é aquele que contrabalança o desafio e a dificuldade com os recursos oferecidos ao jogador, a premiação e a habilidade prevista desse. Mas e daí? E, se, só de sacanagem, alguém quiser criar um jogo que não tem nada de balanceado?

Bem, já tiveram essa idéia. Uma das referências no mundo cibernético de jogos que vão nessa linha é o I Wanna Be The Guy.

A história não podia ser mais simples – o protagonista, como indica o título, simplesmente quer ser O CARA e para tanto, tem que passar pelas mais difíceis provações. Agora, não há tempo para você se adaptar e ir melhorando, pegando o jeito da coisa. Não sacou o jogo? Bem, vai ficar eternamente na primeira tela. Isso, porque o jogo é extremamente difícil, trazendo por muitas vezes, injustiças – surpresas como o aparecimento de espinhos onde, até então, não tinha nada e nem indicava a possibilidade de tê-los. Para quem não quer jogar, mas quer sentir qual o nível do jogo, recomendo esse vídeo de um percurso de um gamer.

Ok. Mas qual a graça de um jogo quase impossível? Na verdade, o desafio, altíssimo, prevê um jogador de bastante habilidade e paciência. Ou seja, não é que o jogo esteja desequilibrado, mas a sua audiência é muito específica. Isso serve para desmascarar, em partes, essa idéia de “equilíbrio”, de “fluência”, como pressupõe tutoriais feito o What is a Good Game, de Overmars. Há um público para esse jogo, e se houvesse outro ainda mais difícil, teria mais gente para tentá-los. Gente que – como o personagem – desejaria ser O CARA, ao menos no mundo dos videogames, dos rankings e do youtube.

Mas eu introduzi essa questão para falar, na realidade de um outro jogo, de estrutura semelhante, mas que me agrada um pouco mais - The Unfair Platformer. O gráfico é mais precário em muitos aspectos, há menos níveis e, como é possível de observar dentre os usuários do Kongregate, muitas vezes ele é tratado como cópia ou como artigo inferior ao IWBTG.

Eu não vou por esse caminho. Além de ser fascinado pela música (todo ex-jogador de Sonic vai compartilhar da minha opinião), vejo nele uma outra proposta. IWBTG é um jogo para ser dificílimo, para dar o prazer de se sentir superior, vencedor, a cada passo. Seu foco está na dificuldade, trazendo pitadas de injustiça para complementá-lo.

The Unfair Platformer, como o nome diz, é um jogo criado para ser injusto. Seu princípio é o de "sacanear" o jogador. Isso, do ponto de vista da linguagem, é extremamente subversivo. Todas as lógicas prévias que o jogador leva para o jogo podem, pouco a pouco, serem desconstruídas. Todo espaço é espaço de suspeita. Tudo parece aleatório, detonando o conhecimento do “gênero” plataforma, que os gamers trazem desde o primeiro Mario Bros.

Especulando mais além, pode-se dizer que o jogo imprime uma outra lógica, exige outro trabalho cognitivo do jogador. A base do uso de jogos é tentativa e erro a partir de deduções e conhecimentos prévios. Se uma pedra verde mata, evite as pedras verdes. Em “Unfair Platformer”, a constante e aleatória mudança dos valores de cada signo exige muito mais memorização e construção de hipóteses localizadas. O que serve para três moedas pode não servir para a quarta. É certo que há uma estrutura – montada a partir de uma lógica mais constante – que sustenta tais subversões. Mas o recado, do início ao fim é de que “você não sabe o suficiente”. É necessário morrer – e várias vezes – para aprender. E, caso você vá jogar de novo depois de um tempo – morrerá tudo de novo, a menos que tenha a famosa memória de elefante.

Ou seja – o que o jogo evidencia é que há um tipo de letramento específico para jogar, e esse letramento é ligado a “tipos relativamente estáveis de enunciado”, que é a definição de “gênero do discurso” segundo Bakhtin. Um jogo que subverta essa lógica desestabiliza por completo o jogador, que tem que rearranjar seus esquemas interpretativos para voltar a “ter sucesso” na partida. Aliás, a própria noção de sucesso muda – aqui, no caso, é morrer o menos possível a cada checkpoint.