sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Jogue Orwell

Tenho trazido aqui, ultimamente, muitos exemplos de jogos que pendem para um lado artístico, expressivo, e discutido como isso traz possibilidades de subversão e reflexão. Ainda no mestrado, lembro, cheguei a discutir a questão do que eu chamava de "jogo crítico" com o Marcelo Buzato - na época colega de estudos terminando o doutorado, hoje professor de Linguagem e Tecnologias da UNICAMP - e ele me fez um questionamento que até então passava batido em todas minhas reflexões: "você fala de jogos crítico de um modo que parece que a criticidade é algo que está vinculado ao artefato. Mas onde está a crítica? No jogo? No jogador? Na relação entre os dois? No momento? Eu não posso despertar minha criticidade por meio de qualquer jogo?". Essa questão, que ainda deixa muitos pontos em aberto para mim, foi retomada curiosamente por Janos Biro, em uma análise por ele realizada com relação ao jogo "Minotaur in a China shop":

[...] um jogo casual despretensioso também pode ser visto de um ponto de vista crítico. Isso faz parte do “estar consciente” do que se joga, já que hoje o jogo é algo automaticamente rotulado de banal, superficial e cujo objetivo é meramente entreter.
Com relação a essa questão, até o momento, mantenho a seguinte oposição: embora não seja possível mesurar a "criticidade" de um jogo, é possível manter a alcunha do que tenho chamado de "jogos críticos" em algumas situações. Estes jogos se caracterizariam, ao meu ver, por facilitar, por meio dos discursos que apresentam em resposta às ações dos jogadores, a reflexão crítica. E vejo o crítico, nesse caso, vinculado a idéia de crise, ou seja, desestabilizando esquemas e noções já aceitas e pouco analisadas. Dois exemplos interessantes e atuais do que eu consideraria jogos críticos com enfoque em questões sociais: Raid Gaza e Oiligarchy. Como sempre, fica a sugestão de jogá-los antes de continuar a leitura.

O primeiro tem o seu foco estritamente na questão das disputas atuais que ocorrem na Faixa de Gaza. O posicionamento contido nele é bastante definido - contra não só a ofensiva israelenses mas também contra o próprio discurso israelense que justifica e avaliza o ataque ao povo palestino. O que mais me chamou atenção no jogo é o modo como os números que embasam a desigualdade entre as mortes de ambos os lados são apresentados. O jogador convive com a desigualdade a ele favorável o tempo todo, mostrando que seu lado (Israel) mata muito mais que o lado alheio (Hamas). A larga margem de diferença entre o jogador e o computador (em meu primeiro jogo era 18:1) pode dar a impressão de que se está jogando dentro dos conformes, de que se está tendo "sucesso", de que está cumprindo a missão proposta. Afinal, é um número muito superior ao esperado para jogos de guerra ou estratégia.

No entanto, o jogador pode se surpreender no final: mesmo cumprindo com a bélica missão de matar o maior número possível de palestinos, a desigualdade numérica pode não ser o bastante. Meus míseros (que no momento pareciam grande coisa, fruto de meu esforço de "bom jogador") 18:1 foram ridicularizados frente aos 25:1, fruto de ações CONCRETAS na região. Ou seja, o próprio jogo conduz o jogador a um número supostamente absurdo e desproporcional, que vai contra todo bom manual de criação de bons jogos para então apresentar o impactante número que corresponde as ações que ocorreram de fato da região. Certamente, a probabilidade de a questão chamar a atenção do jogador e levá-lo a ponderar sobre os lados envolvidos é maior do que estando desinteressadamente vendo o Jornal Nacional na hora da janta com a família. (Para ver outra análise sobre o jogo, de Ian Bogost, mais longa e apurada, clique aqui). Sintoma disso é como o jogo, em sites que o abrigam como o Kongregate, já divide opiniões (acaloradas) com relação a sua temática.

Oiligarchy, o mais novo jogo produzindo por La Molleindustria e segundo exemplo de jogo crítico aqui trazido questões relacionadas ao controle do petróleo. Aliás, o próprio título irônico, como fica evidente, antecipa essa informação. Pode-se dizer que um jogo e outro possuem uma sutil ligação, a qual pode ser explicada por meio dessa explanação de Janos Biro, do post acima citado:

Governos bélicos lucram com a destruição de mercadorias, como já nos disse George Orwell. Num trecho do documentário “A corporação”, mostra-se que a guerra é na verdade uma oportunidade de lucro para muitos setores da economia. Destruir um pouco é prejuízo, mas destruir muito pode ge
rar um lucro tão grande que o sistema capitalista entra em crise com a ameaça do fim da guerra.

Não é por acaso que a Guerra é considerada um investimento em Oiligarchy. E um dos locais em que a guerra é possível é, também não por acaso, o Oriente Médio. O jogo aborda a questão da exploração de petróleo de uma maneira razoavelmente ampla para seu tamanho reduzido, trazendo implicações políticas, econômicas, sociais e ambientais. Interessante é o foco dado à necessidade de devastação que o "vício" no petróleo proporciona e a ênfase no fato de ser um bem não renovável. Normalmente os jogos que tratam de exploração de recursos (Warcraft, AoE e similares), a fim de favorecer a jogabilidade, sempre equilibra a quantidade de recurso de uma fase com as necessidades de vitória do jogador. Em Oiligarchy, o jogador é avisado de antemão que os recursos irão acabar e ponto final. Mais que isso, o jogo não para no auge, mas na decadência do jogador e do mundo - algo que representa exatamente o momento em que vivemos.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Desconstruindo o "Game Over"

Antes mesmo de compreender inglês, o jovem jogador sabe perfeitamente o significado de um Game Over. O termo, impossível de ser analisado como junção das palavras "jogo" e "terminado", adquire uma força iconográfica. O game over costuma ser o sinônimo do fracasso, dado que a possibilidade de vê-lo em tela por ter falhado na missão proposta é muito maior do que vê-lo por ter chegado ao fim previsto de um jogo. Curioso destacar, ainda, que o game over, no fracasso, geralmente é associado à morte.

Porém, pode-se pensar que não há nisso um jogo "errado". Se o jogador realizou um caminho previsto pelo jogo é porque é um trajeto possível, logo, certo. Mesmo que isso cause a morte.

Enquanto a maioria dos jogos favorece uma cisão entre maneiras "certas" e "erradas" de se terminar um jogo, há aqueles que vão em direção contrária, estimulando justamente a exploração de múltiplas leituras. Um excelente exemplo disso é o que temos no jogo-arte The Majesty of Colors, produzido por Gregory Weir. Proponho que, antes da continuar o texto, o leitor se aventure pelo jogo... ;)





Há cinco finais possíveis para a narrativa proposta pelo autor. Facilita, lógico, a fórmula escolhida por ele (e que nem é tão original no meio artístico, mas torna-se bastante eficiente nessa proposta): a grande e misteriosa criatura marinha controlada pelo jogador é, nada mais, que parte do sonho de uma pessoa. Assim, todo fim atenua as ações realizadas (sejam agressivas ou pacíficas) bem como a possível morte. Mais que isso, todo fim, em última análise, converge - mesmo que de maneira diferente - para uma única possibilidade: a de a pessoa acordar de seu sonho.

De qualquer modo, o jogo trabalha com algo interessante: encarar a própria morte como um fim possível, natural, e hierarquicamente igual a qualquer outro fim possível do jogo. O game over, nesse sentido, não está vinculado a sucessos ou fracassos. Também não está vinculado a desfechos pacíficos ou violêntos. São todas possibilidades de respostas com relação à ação do jogador frente aos eventos propostos pelo jogo. Em outras palavras, um retorno do modo de jogar do próprio jogador. Múltiplas leituras que chegam a múltiplos fins, sem que seja possível mesurar fracassos e sucessos, habilidades e inabilidades.

Isso nos leva a pensar também que, em uma primeira partida, o jogador não é levado nem a ser violento, nem a ser pacífico. Ele pode ir para as duas possibilidades que o jogo vai igualmente fluir. Isso também desconstrói uma cultura de "querer acertar" o melhor caminho de se jogar, o que "é mais fácil" e o que "mais rende pontos" que é, o que muitas vezes, direciona o jogador para um tipo de comportamento (e o faz cúmplice de um conjunto de discursos em específico).

Não que o jogo seja "neutro", "imparcial", ou algo do gênero. Mas, ao se propor reflexivo e aberto, cumpre um papel interessante e necessário, que é o de questionar certas convenções naturalizadas na cultura gamer.