sexta-feira, 4 de setembro de 2009

A jogabilidade como argumento

É interessante notar como a jogabilidade, em seu aspecto material, pode ser central na mudança da interpretação dos aspectos de um jogo e da relação que ele possui com nossos conhecimentos prévios. Explico: as relações do mecanismo do jogo e as escolhas mais sutis podem criar efeitos surpreendentes na construção de sentido.

Antes de tudo, é disso que estou falando quando, na análise de alguns jogos, insisto que não se pode considerar seu mecanismo como transparente. Não é porque temos convenções e fórmulas consagradas (como as dos beat'em'up ou shoot'em'up) que elas são transparentes. São altamente convencionais e naturalizadas por muitos: sejam jogadores, autores, ou disseminadores. Mas transparentes, não.

Um exemplo simples? Vamos lembrar de jogos como Double Dragon ou Streets Of Rage. Nesses casos, há um único personagem (o que você comanda) que é capaz de, feito Hércules, detonar exércitos inteiros, armados, somente para destruir um inimigo que é comum a todos. Que tipo de ideias estão circulando nesse contexto? Em primeiro lugar, a do super-herói, o sobre-humano, aquele que, por algum motivo, está acima de todos os outros e que usa disso a seu favor e a favor daquilo que acredita. Em segundo, a dicotomia bem x mal, que dificilmente é problematizada (uma exceção é o jogo Pazzon, já discutido neste blog). É ético matar e destruir quando se é o herói, pois isso vai nos levar ao fim do mal.

Se essas noções não são "neutras", por que muitas vezes as vemos assim? Minha hipótese: por uma longa tradição e por um sistema de valores que se repete e se recria de modo a sedimentar certas estruturas e suavizá-las como naturais e óbvias. Ulisses não seria capaz de fazer o que fez caso fosse o senhor engravatado que trabalha cotidianamente no gabinete ao lado. Nem Bush teria quem apoiasse suas declaraçoes de que capitaneava a luta do bem contra o mal caso isso não estivesse em nosso imaginário. Assim, é fácil compreender como a migração desses valores para jogos dos gêneros shoot'em'up, beat'em'up ou até plataformas em geral (lembrem da narrativa de Mario Bross) podem passar despercebidos. Ainda mais porque geralmente esses gêneros costumam ser altamente repetitivos.

Mas pequenas mudanças em mecanismos ou representações desses jogos podem subverter o convencional e trazer efeitos surpreendentes. Vou ressaltar, nesse post, por meio do jogo Queens. Sugiro que acessem o link e, depois, prossigam nessa análise, que contém spoilers.

Queens e a violência doméstica. Cada morte, uma pessoa.
Em "Queens", você controla uma rainha que é jogada por um rei cruel em uma espécie de calabouço. Seu objetivo e tentar fugir dali. O enredo já começa interessante: então não será o príncipe encantado que irá salvá-la? (Quem sabe esse rei cruel não foi o príncipe encantado de outrora?)
Mas o que chama a atenção é o efeito gerado por uma opção que o autor do jogo fez deiberadamente. A princesa que é jogada no calabouço tem nome e, na medida do possível, personalidade (cor de cabelo e vestido únicos). E, mais que isso - quando o jogador falha, esta rainha que conhecemos pelo nome, morre para sempre. O jogador pode, na sequência, controlar outra vítima do rei atirada ao calabouço, com outro nome e outra aparência. Mas não pode fazer a rainha morta voltar. Uma simples randomização inicial de nome e sprite de aparência da personagem que cria um efeito surpreendente.




Se ninguém pode salvar as rainhas já mortas, o que é a vitória? A vingança de todas que já se foram, ou seja, um olhar para o passado? A libertação da atual rainha frente a tirania do rei, um olhar para o presente? A interrupção da contínua maldade deste homem, que jogaria muitas outras mulheres no calabouço enquanto pudesse? Tudo isso? Parte de tudo isso? Muito pode ser dito e pensado em relação à dominação dos homens frente às mulheres nessa metáfora de Noonat. E sobre as consequências da morte - algo que é apagado geralmente do contexto dos jogos digitais.

É conveniente lembrar que esse jogo foi feito pelo autor em um projeto mais amplo para se discutir violência doméstica. Pensar no papel do homem e da mulher na nossa sociedade, pensar na relação desse papel com a visão histórica de homem e mulher sustentada (e debatida, atacada) em nossa sociedade é interessante. Mas esse efeito, no jogo, depende de uma escolha simples, mas engenhosa e acertada: a crueldade do rei não foi fortuita e momentânea e não pode ser justificada de modo algum por uma reação a qualquer atributo da mulher. Sua crueldade é uma prática (independente de quem está do outro lado) e contínua. Não há arrependimento enquanto ele está no poder. E a vida das mulheres, nesse contexto, são tão descartáveis ao rei como são a nós descartáveis as vidas múltiplas dos inúmeros Mários, Sonics, e Donkey Kongs que matamos ao longo de nossas horas de entretenimento.