domingo, 25 de outubro de 2009

Jogabilidade (ou GamePlay?) como argumento III

Para fechar a discussão (pelo menos temporariamente), uma análise/resenha de um jogo bastante interessante, que usa o conscientemente o mecanismo como forma de organização de signos, o Bullfist.



Bullfist foi recentemente lançado gratuitamente na web por Terry Cavanagh, estimulado por um concurso de 3h com o tema "Communist Bull Rage" e "Random". O autor não terminou o jogo a tempo para o concurso, mas resolveu dar continuidade ao projeto.

Gráficos
Os gráficos dos personagens do jogo tem um ar "retrô" dos pixels. Há pouquíssima animação (basicamente se resume aos "búfalos" comandandos pelo jogador), de modo que os elementos do jogo assumem praticamente um caráter icônico. Há também pouquíssima variedade de objetos (mas o suficiente para cumprir a proposta do jogo). O cenário é um sidescrolling 2d contínuo e há uso de poucas cores (a predominância é o vermelho, o que é significativo, já que o jogo brinca com a questão do "comunismo" x "capitalismo").
As mudanças nas cores são sutis, mas significativas: os objetos que o jogador pode destruir são marcados por azul/preto e os que são mais fortes que ele são marcados em vermelho, cores convencionalmente usadas para proibição/acesso.

Sons
A música do jogo é curta, contínua, mas agradável. O ritmo dela parece estar de acordo com o ritmo contínuo do jogo. Os efeitos sonoros são poucos e discretos, mas o suficiente para funcionar como feedback das ações realizadas.

Interação
A interface do jogo é bastante simples e os dispositivos utilizados também. Com apenas 4 botões de movimento você joga. Embora não haja botões para outros tipos de ação, isso não torna o jogo com um aspecto "incompleto": o mecanismo de "juntar búfalos" para destruir as barreiras é convincente.

Mecânica
A jogabilidade, apenas de simples, tem um ar "inovador" diante das demais propostas de "sidescrolling". Normalmente é necessário ou destruir as barreiras com alguma espécie de projétil ou desviar de todas elas. No jogo em questão, é preciso "passar por cima" delas. Mas o que torna o jogo criativo é que o jogador tem que tomar cuidade para ver a força da sua "manada". Com 1 búfalo, o jogador não consegue destruir nada, devendo procurar outros búfalos. Com 2, pode destruir os "capitalists pig dogs". Com 4, pode destruir os carros. Com 6, pode destruir tudo temporariamente (até voltar automaticamente para 2). Assim, o jogo consegue criar um objetivo diferente para cada "estado" do jogador.
Outra coisa que deve ser ressaltada é que o jogo é sempre randômico. Todo novo jogo é uma nova configuração dos objetos, não permitindo que o jogador "decore" o caminho para ganhar e gerando um fator-replay bastante extenso.

Narrativa
A narrativa do jogo é bastante simples e torna-se bem engraçada pelo modo estereotipado como é apresentada. O jogo é uma metáfora da lógica de massa do comunismo contra o capitalismo. Em pouquíssimas palavras, pode-se resumir a narrativa na materialização do provérbio "a união faz a força", o que é bem representado na mecânica do jogo (quanto mais búfalos, mais coisas você está apto a destruir). Assim, o jogo brinca com esse provérbio e faz dos búfalos uma representação de uma possível união de massas qualquer contra elementos estáticos e estabelecidos do capitalismo. Curioso notar que a mecânica e a narrativa se entrelaçam a todo momento e se entrelaçam com um conhecimento prévio não só do que seja capitalismo e comunismo, mas também de como um comunista enxerga o capitalismo. Desse modo, as escolhas mais sutis como o fato de os capitalistas aparentemente "não reagirem" (embora a resistência deles e o ato de ficar "estáticos") é cheio de sentidos, por exemplo.

Personagens
Existem 4 tipos de personagens no jogo, todos representando elementos altamente estereotipados:
Os búfalos: representam o jogador no jogo e o comunismo em ação num plano metafórico.
"Capitalists pigs dogs": representam a resistência mais fraca dos inimigos.
Automóveis Capitalistas: representam a resistência intermediária dos inimigos.
Edifícios Capitalistas: representam a maior resistência dos inimigos, podendo ser vencida somente por uma força temporária da personagem (algo como o PacMan depois de comer uma fruta).

Conclusão:
Como jogo casual é uma proposta excelente, inteligente, sem ser panfletária. Além da narrativa ser extremamente irônica e a divertida música e os textos estereotipados ajudarem nessa construção, a mecânica por si só é inteligente e não fica na mesmice dos "shoot'em'up". Tanto é que pode ser jogada por quem não entende nada sobre capitalismo e comunismo que, embora isso faça perder o sentido metafórico do jogo, não prejudica na diversão e na dinâmica do jogo.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

A jogabilidade como argumento II

Para prosseguir na discussão sobre o uso da jogabilidade como argumento, é necessário explicitar um pressuposto meu sobre jogo e jogabilidade que não é o mais corrente nem o mais óbvio entre os produtores de jogos nem entre jogadores em geral.

A visão padrão (bem didaticamente resumida) que se tem sobre jogos muitas vezes se limita a considerá-los bons (ou, ainda, a considerá-los "jogos") diante de um conjunto de preceitos "infalíveis". Preceitos que não garantem a qualidade do jogo, mas, se estiverem ausentes, garantem a falta de qualidade, a falta de público e, com isso, seu fracasso. Desde que comecei a me interessar por jogos e procurar entendê-los do ponto de vista de sua criação (embora eu ainda não tenha conseguido criar um, propriamente, pois ainda me faltam parcerias e habilidades fundamentais), encontro manuais, tutorias e "bíblias" de game design que insistem nesse conjunto de itens. Destaco, pela facilidade de compreensão e acesso, esta aqui, desenvolvida por Mark Overmars, como primeiro tutorial para a ferramenta Game Maker.

Meu ponto é: tais documentos são interessantes e certamente auxiliam muitos game designers a pensar tecnicamente na criação de seus jogos. Mas pautar a avaliação de jogos tendo preceitos semelhantes como critério é, ao meu ver, analisar a rica obra de Guimarães Rosa em termos daquelas análises mecânicas de: autor em primeira ou terceira pessoa? Personagens planos ou esféricos? Espaço? Tempo? (Obrigado ao André Renato, de quem "roubei" esse exemplo de uma recente conversa para aplicá-lo aqui). Ou, ainda, fazer um curso técnico de pintura/desenho e achar que ali está a forma para a arte (o que leva a pensar que tudo que não repetir aquela fórmula não é arte, não é bom, não é pintura/desenho).

Em termos de jogos, por absoluta ausência de tradição, imagino, temos os analisado apenas diante de uma análise padrão, torcendo o nariz para pontos fora da curva. Concluindo, é isso que, para mim, faz jogos como Unfair Platformer, I wanna be the guy, Karoshi, entre outros, tão interessante: eles não só dominam a técnica e a linguagem dos jogos como, ao subverter certos padrões (como: o jogo deve ter uma curva de aprendizado adequada; o jogo deve ter um grau de previsibilidade que permita que o jogador aprenda com seus erros) mostram que os recursos técnicos e as convenções estão sempre ali em prol de um efeito tal. E não são mais que isso: recursos e convenções a serem explorados.

Isso tudo para falar de um jogo que, diante de análises mais restritas ou tradicionais nem poderia ser considerado "jogo", mas sim uma "animação interativa" ou algo do tipo: é o Chuck Norris Game, produzido pelo Gabriel Moura, brasileiro de Niterói. Na análise mecânica acima apontada provavelmente teríamos como falar que ele "peca pela total ausência do desafio, tornando-se monótono, entediante, e não seduzindo o jogador".

Mas não é o que vejo. Para mim, o jogo em questão exemplifica bem a ideia de que a jogabilidade deve servir para gerar certos efeitos no jogador, ainda que, para isso, precise se desvincular de conceitos pré-determinados e pasteurizados como "fluência", "desafio", "reincidência", etc. Fazendo um óbvio intertexto com o altamente difundido meme "Chuck Norris Facts", o jogo tem a felicidade de conseguir materializar uma piada que tem sua graça no meio escrito e digital em um jogo que mantém sua graça. Ou, ainda: uma brincadeira que utiliza certos tipos de recursos (penso na escrita alfabética, aberta à contribuições coletivas e anônimas, usando, em sua materialidade, frases declarativas no presente, o que garante um efeito de verdade e de generalidade) e facilidades (penso na capacidade de disseminação das mídias digitais) em outra brincadeira que faz usos nada ingênuos de técnicas particulares da projeção de jogos digitais.

Em poucas linhas, já está claro, óbvio e batido dentro dos estudos da linguagem que escolher entre: "Eu acho que Chuck Norris faria tal coisa" e "Chuck Norris faz tal coisa" muda o efeito discursivo e o caminho argumentativo na escrita. Dentro dos estudos dos jogos, igualmente, deve-se perceber que as escolhas feitas no design também possuem efeitos particulares: qual o efeito de observar que nada fere nem abala Chuck Norris como personagem principal de um jogo, quando, tipicamente, mesmo o mais valente dos personagens (Duke Nukem? Mario? Homem-Aranha?) está sujeito a ser derrotado? Que seu Roundhouse Kick mata ou elimina qualquer um que esteja em seu caminho, desde "minions" tradicionais como os do Sonic ou do Mario até personagens tidos como carismáticos e com vocação para o heroísmo como Ryu? Que a contagem de pontos é altamente generosa, que as vidas são infinitas (embora ele nem precisa usá-las) e que todas as fases são passadas com o selo "perfect" de qualidade (premiação que normalmente só é dada ao jogador mais abalizado)? Em suma: qual o efeito de perceber que para comandar Chuck Norris não é preciso ser um bom jogador, que a personagem é tão completa que não precisa da ajuda da sua habilidade, jogador, tão ansioso para mostrar ao universo do jogo como você é hábil, inteligente e estratégico?

Disso se pode tirar algumas reflexões, as quais podem ser expandidas em discussões futuras. Em primeiro lugar, a "formalização" e as regras de composição dos jogos, que pode ser benéfica ou até essencial em alguns casos para auxiliar projetistas em questões técnicas não pode ser vista como parâmetro para análise de jogos, sob pena de "fechar a visão" para iniciativas criativas e engenhosas. Segundo, o tema da brincadeira é o mesmo do presente no Chuck Norris Facts, e inclusive é obviamente o que motivou a criação do jogo, mas certamente os recursos utilizados em cada caso (escrita em meio digital x jogo) geram efeitos diferentes. E isso quer dizer que não há apenas a "aplicação" de uma ideia a um jogo. A mudança de recursos primários (escrita para jogabilidade em ambiente multimodal) pressupõe um trabalho criativo por si só, que é o de pensar em como se apropriar das convenções do meio para fazer algo com sentido. Fazer um jogo com criticidade, então, parece pressupor, logo de início, analisar alguns possíveis efeitos argumentativos de sua jogabilidade naquele contexto.