sexta-feira, 17 de julho de 2009

O que não pode ser medido

No post mais recente de seu blog, Janos Biro divulga um interessantíssimo site de jogos e experimentos interativos que, apesar de ter surgido em 2006, eu nunca tive a oportunidade de conhecer antes: o Rrrrthats5rs.com. O site, em geral é construído de uma maneira bastante interessante, utilizando, inclusive, a interface a favor dele quando, por exemplo, coloca "falsos comentários" em cada jogo, como bem aponta Biro.

Dentre os inúmeros jogos ali apresentados (entre no site se quiser jogá-los, entre no Arte e Subversão Interativa para breves comentários sobre os jogos), chamou-me a atenção o Please the Art Critic (Satisfaça o crítico de arte). Sugiro que o leitor teste o jogo antes de prosseguir a leitura.

O jogo se apresenta da seguinte maneira: seu objetivo é desenhar, com uma palheta de poucas cores, obras que trazem o campo semântico das artes (encontram-se termos como surrealista, minimalista, impressionista, etc.) como referência. O trabalho do jogador, em seguida, deve ser submetido a um crítico de arte para a apreciação. Assim, se o desenho responder aos anseios do crítico, o jogador passa de fase e é desafiado com uma nova proposta de desenho. Caso contrário, o jogo acaba.

Assim é como o jogo se apresenta. Não necessariamente como o jogo funciona. Por quê? Primeiro, que a tal interpretação do crítico é o que indica o que deve ser feito ou não, e não os termos "surrealista", "impressionista", que se mostram vazios de sentido. Assim, na primeira fase, o crítico aponta (caso o jogador faça uma pintura com alguma outra cor) que, para ele, somente o VERMELHO pode representar o romance impressionista. Na segunda, ele considera que um "aperto de mão surrealista" lhe lembra uma bandeira da Irlanda. Nesse ponto, então, diferencia-se o que é pedido na fase e a dica do crítico, esta muito mais efetiva, aquela, vaga.

Mas isso não esgota a questão do acerto/erro no jogo. Na realidade, para o jogo "entender" que você deve passar de fase e, na sua interface, "dizer" que o crítico aprovou sua obra, é necessário cumprir um esquema bem restrito:
  • Na primeira fase, desenhar qualquer coisa vermelha, podendo ser uma simples linha;
  • Na segunda, desenhar qualquer coisa que contenha somente as cores verde e laranja (pode ser uma linha de cada)
  • Na terceira, desenhar um conjunto de pontos azuis alinhados
  • Na quarta, selecionar a tinta preta, clicar na tela como se fosse desenhar, mas não desenhar nada
  • Na quinta, rabiscar por bastante tempo com o botão clicando no mouse com a tinta preta.

Assim, apesar dos discursos apresentados pelo crítico (um artifício do jogo) e pelo jogo, o que deve ser desenhado em tela não será avaliado, obviamente, em termos estéticos, mas a partir de regras internas bem simples. O nível de compreensão da máquina não é igual ao que é aparentemente exigido pela interface e "acertar" depende de uma coincidência ou uma sobreposição desses dois níveis, induzida pela figura do crítico. Basta um traço para se acertar a primeira fase e dois riscos para se acertar a segunda, mas observem como que o restante também influencia, nesse desenho apresentado em um fórum por um jogador, mostrando como ele passou de fase: Imagem (extraída do fórum Gamershood)

No primeiro, o que lembra "romance" - um coração vermelho; no segundo, a recomendação do crítico - a bandeira da Irlanda.

Ou seja, pode-se dizer que o jogador tem de reagir a fontes diferentes de informações e que "acertar" em um jogo não quer dizer dominá-lo - pode-se ganhar sem ter a consciência do, exatamente, entre o conjunto de ações e informações apresentadas ao software, que de fato levou o jogador à vitória. Ao acessar alguns fóruns com discussões sobre esse jogo, essa impressão se expande. Em www.nordinho.net/vbull/other-cool-games/22526-please-art-critic.html, um usuário apresenta esse conjunto de respostas para se "vencer":
1. draw a red Z
2. draw one orange arrow> near the guys head / draw second green arrow > next to orange arrow
3. draw about 30+ dots in blue and try to keep them small
4. draw anything in black/ press clear 5 times and submit
5. draw a black zig zag around the screen and try not to touch the other parts of the line

Em outro post, recomenda-se o seguinte:
Level 1= a dot of red or anything that’s red, you can even draw a dagger! lol

Level 2= a green line on one side an orange line on over

Level 3= blue dots in a big circle

Level 4= nothing!

level 5= scribble for ages

Também parece relevante apontar que esse jogo me remete a um dos últimos jogos ditos comercias com que entrei em contato, o "The Movies". No papel de "um magnata dos filmes, um caçador de talentos e /ou um diretor de filmes", segundo o site do jogo, o jogador é levado a produzir e vender filmes e, desse modo, levar ao sucesso a sua própria produtora. Porém, as relações entre as ações do jogador e o que leva ao sucesso não são estéticas. E, por mais que algumas dicas norteiem como o jogador deve conduzir o jogo, elas cumprem a mesma função do crítico de arte: induzir à sobreposição de acertos. Ou seja, apesar da complexidade muito maior desse segundo jogo, ele (e qualquer outro jogo ou software que anuncie ou pareça oferecer respostas estéticas) esbarra no mesmo ponto, de que isso não pode ser medido de antemão. Nesse ponto, então, é necessário deixar claro o que deveria ser óbivo: jogos serão limitadíssimos ao simular a produção artística e, mesmo se propondo a isso, o que será avaliado sempre será algum item paralelo a isso - basta lembrar, por fim, do famoso Guitar Hero.

Em suma, esse jogo me leva a algumas conclusões. A primeira é a de que o mecanismo dos jogos digitais pode ser fascinante - pela fantasia que cria na sobreposição dos níveis da interface e de seus mecanismos internos - mas não é ingênuo e poderia ser visto mais cautelosamente. Ainda estou em dúvida quanto a isto, mas tenho pensado fortemente que o honesto, do ponto de vista do autor (de qualquer jogo), seria sempre disponibilizar ao jogador, desnudar, de algum modo, o nível mais profundo do jogo. Mesmo a minha interpretação do que deve ser feito, pensada e pesquisada com atenção com base em todas as outras que encontrei e com base em minha própria (cansativa) e demorada experiência com o jogo está do outro lado da "caixa preta" e não deve equivaler às regras que constróem o jogo de fato. O que me traz a dúvida se isso deve ser feito é a possibilidade de quebra de "magia" que os jogos podem vir a ter.
Em segundo lugar, há elementos que não podem ser medidos ou apresentados à apreciação de uma inteligência artificial. Jogos como Guitar Hero ou The Movies vendem interessantíssimas fantasias, desde que elas não interfiram na noção do jogador de que aquilo é apenas isso - um construto, uma fantasia. De que estão adquirindo, ao aprender a jogar, apenas uma opinião (razoavelmente velada e parcialmente inacessível) sobre o que é ter sucesso nesse ou naquele contexto.


quinta-feira, 2 de julho de 2009

Home of The Underdogs ressurge!!!

Conforme notícia que acabei de ler no Arte e Subversão Interativa, o lendário Home Of The Underdogs está de volta. Vou atualizar o link, inclusive, que tenho aqui deles.

Tenho uma história pessoal relacionada ao HOTU. Morei em Curitiba até o ano 2000. Fui para Campinas estudar e levei na bagagem pouquíssimas coisas, entre elas um pentium já bastante obsoleto na época que já havia sido descartado por meu pai, depois de um tempo, também por minha irmã. Com essa limitação e com a limitação de conexão (fiquei até 2006, quando já morava em São Paulo, com conexão de Internet discada), o que eu conseguia jogar era o que o HOTU disponibilizava. Talvez esse seja um dos motivos pelos quais eu comecei a valorizar a engenhosidade dos jogos em detrimento de suas supernovidades tecnológicas.

Uma das coisas que mais me chamavam a atenção era como os jogos eram classificados, nã se limitando apenas às tradicionais divisões entre "estratégia", "rpg", ação" e etc. Se não estou enganado, antes mesmo da popularização dos tags tal como vemos em blogs hoje, o sistema de banco de dados do portal já fazia uso de marcadores. E marcadores intrigantes. Lembro que me interessavam jogos com marcadores como "unique", "freedom" (ou era freestyle? Algo assim), "politics", entre outro.

Também é pertinente lembrar que é o site que abrigava e divulgava o Manifesto Scratchware (traduzido por Janos Biro, conforme divulgado logo no início desse blog).

Enfim, um trabalho excepcional, em um site que foi muito além da disponibilização de jogos e de reviews. Gamers, comemorem. Mais um site de interesse geral - um dos melhores - está disponível novamente.

Quando tudo está à venda

Os olhos do meu bem
E os filhos meus
Se alguém pensa que vai levar
Eu posso vender
Quanto vai pagar?
(Bancarrota Blues, Chico Buarque)

Publicado no dia 30 de junho no portal Kongregate, UPGRADE COMPLETE! é um jogo cujo sucesso chama a atenção. O jogo conta atualmente com uma média de avaliação de 4.49, o que é espantoso ao se considerar que isso supera a avaliação dos melhores jogos avaliados até então no site - 4.47 e 4.48. Lógico que essas avaliações são dinâmicas e pode ocorrer de essa média cair com o tempo. Mas, ainda assim, é um feito considerável.

É de se perguntar o que há de novo que possa despertar tanto interesse. Na ação do jogo, nada de novo: um "Shoot em up" com "ondas", em que não há inimigos muito diferentes, em que as ondas (ou fases) seguem o mesmo padrão de evolução(em velocidade, quantidade, resistência e/ou poder destrutivo). O jogo ainda tem influência dos famosos "Tower Defenses", que por serem populares, podem se apresentar como um chamariz inicial ao público. Mas isso não garantiria o sucesso. Sugiro que, então, o próprio leitor jogue primeiro, perceba qual a inovação apresentada, para depois voltar a esse post, que a partir de agora contém spoilers.

De fato, não há novidades estruturais na dinâmica da ação do jogo. O que há de novo é que quase tudo, desde o carregamento inicial do jogo, passando pela música e chegando ao botão de "mudo" pode ou deve ser comprado. Sem comprar a música, você não a ouve. Sem o botão de mudo, você não a interrompe. Ou seja, o diferencial é que o jogo expande as possibilidades de c
ompra e upgrade para o "entorno da ação do jogo" que, por falta de palavra melhor, vou chamar de "parajogo". É desse modo que, assim como os já discutidos "The Unfair Platformer" e "IWBTG", "Karoshi 2.0", "Achievement Unlocked", entre outros, o jogo evidencia as marcas históricas e as convenções que o envolve, um facilitador para o pensamento crítico.

Interessante é perceber quais brechas essa desconstrução oferece e para que interpretações e reflexões elas dão margens. Vamos às que mais saltaram aos meus olhos:

A) Um primeiro ponto que deve ser discutido é até que ponto devemos aceitar ou atingir todas as expectativas propostas pelos jogos. Um exemplo bobo: parece natural que tentemos cumprir uma missão paralela em AoE só porque ela exista, mesmo que ela nos dificulte a cumprir a missão principal. Mecanismos que dão sobrevida à jogabilidade, como "fases secretas", "missões especiais", "finais especiais" têm propósitos que nem sempre são justificáveis ou plausíveis na lógica do jogo, mas por vezes em uma lógica externa a ele: de manter o jogador envolvido a partir de diferentes desafios. Assim, se é que podemos entrar no campo da ética, qual o limite que deve haver entre o jogo e o dito parajogo?
Para "COMPLETE UPGRADE", este deve ser bastante secundário àquele. Afinal, chegar ao último upgrade é chegar (terminando as 20 ondas possíveis ou não) ao fim do jogo. E com uma mensagem nada ambígua:
Talvez da próxima vez que você estiver jogando um jogo, você o avaliará mais pelo tanto que se divertiu com ele do que pela complexidade de seu sistema de upgrade.
Nesse ponto em específico, eu sou menos purista. De fato, como o parajogo se configura não é minha maior preocupação. Ele, ao meu ver, e como outros exemplos já evidenciaram, é parte do jogo. Talvez seja um resquício do romantismo essa necessidade de diferenciar a "obra" da "não-obra", o "gênio" do "não-gênio". Ou seja, assim como já aboliram a moldura há tempos nas artes visuais, não há porque achar que um sistema de upgrade é menos jogo do que a "ação". Um editor de times pode ser, para alguns, mais divertido do que a simulação da partida de futebol. Qual o problema? O jogo está ali para ser utilizado por todos, do modo como cada um bem entende. Ou seja, nesse primeiro nível, não vejo motivo para alardes. Mas, ressalto que(e explicarei adiante) quando o foco deixa de ser as fases em si e passa a ser o acúmulo de pontos com o objetivo de poder comprar elementos do parajogo, isso não deixa de ser assustador.

B) O exagero irônico que o jogo traz frente às compras e os upgrades evidencia que a relação entre "eficiência na ação do jogo" x "valor de cada upgrade" não é necessariamente direta nem consensual. E isso deve ser expandido a todos os jogos que conhecemos com suas não-transparentes lógicas internas. Ou seja, quanto vale "matar", quanto vale cada moeda adquirida e quanto custam os upgrades e os benefícios que essas moedas podem comprar? São decisões tomadas por produtores de um modo que nunca fica exatamente claro para o jogador. Um experimento que poderia levar a cabo essa "aleatoridade" seria algum jogo em que esses valores não fossem predeterminados, mas randomizados no início de cada jogo. Fica aos gamers a sugestão.
Isso me remete à insistência de Janos Biro em discutir um ponto em particular de jogos como Pazzon ou Execution: porque nos tornamos tão facilmente cúmplices das poucas opções que os jogos nos apresentam? O que nos leva a chegar ao fim de "COMPLETE UPGRADE"? É a satisfação de vencer desafios por mais aleatórios que sejam, materializados em jogos? É a sensação da vitória em sua face mais "pura", apresentada por Huizinga? Ou esses jogos representam nosso modo de viver e de pensar? A filosofia do agir, do fazer, do "é melhor se arrepender de ter feito do que de não ter feito" que molda nosso modo de pensar? Ainda: a própria teoria do Huizinga não estava subjugada já a essa lógica, fazendo com que a transcendência que ele desejava atribuir aos jogos não fosse mais do que impossibilidade de entender as limitações de sua própria sociedade?

C) Esse jogo, para mim, ainda evidencia o modo como estamos vinculados a uma comunidade do "consumir" pelo "consumir". Afinal, a ação do jogo é pretexto para a aquisição de recursos (mesmo que válidos somente dentro do software) que lhe possibilitam comprar itens do parajogo de que você não precisa. E itens aos quais você provavelmente não dará importância depois de adquiridos. No jogo, troca-se por várias vezes de menu, de gráficos da ação do jogo, de "copyright", de título", numa pretensa evolução. Pretensa, obviamente, pois se pensarmos em termos estéticos, pode-se dizer que há apenas mudanças. Inclusive, ao meu ver, o visual em vetorial é o mais bonito, assim como o resultado estético final da tela inicial não é o que mais me agrada.
No entanto, na esteira da lógica da obsolescência, o jogo induz o jogador a querer melhorias e aceitar os novos padrões como melhores padrões que os que vieram (mas inferiores aos que virão), numa incômoda (para mim) linearidade. Assim, o "upgrade" cria a constante ilusão da falta, base para o consumismo. Não importa se já lhe parece bom o modo como o jogo está. Ele não será bom enquanto um terceiro continuar lhe avisando que ele pode "evoluir". Não sei se isso supera o que pretendia o autor e seu argumento central, mas é algo bem mais grave, ao meu ver, do que a relação jogo x parajogo.
Essa discussão me faz retomar e reavaliar o que eu havia esboçado no artigo sobre o The Sims: o que leva alguém a comprar um sofá mais caro do que já se tem na casa sob a alegação de que o mais caro é o que mais dá conforto? O que leva alguém a querer comprar enfeites dos mais diversos para alegrar os Sims? Mais, o que leva alguém a gastar dinheiro para mudar a cor de um móvel, para trocar a cor de uma casa? É o desejo de cumprir melhor a meta? É um desejo de consumir externo ao jogo que ali se materializa numa dinâmica ideal porém plausível?

Obviamente, essas ponderações não esgotam a riqueza de discussões que se pode ter sobre os temas apresentados. Mas, enfim, serve para refletir ao menos sobre alguns pontos. E para abrir ainda mais os debates possíveis. Por exemplo, quando tudo está à venda dentro de um jogo e, pior, quando nos submetemos a executar tarefas dentro dele que não nos divertem o suficiente a fim de poder adquirir aquilo que nos vendem, mesmo sem precisarmos, definições de jogo como "fuga do cotidiano" não parecem piada de mau-gosto?