terça-feira, 30 de março de 2010

Adendo ao post anterior - bons jogos: para quem?

Esse é um comentário que prevê certas reações frente não só ao Sim Dilema (ver post anterior!), mas a jogos que possuam o mesmo caráter "denso" que ele. Proponho a expandir a discussão sobre o fato de que o jogo em questão não foi comentado ou debatido em lugar algum, embora amplamente divulgado.

"Esse jogo não é divertido!". Primeiro: diversão é algo cultural, local. Jogos como esse certamente não apresenta a mesma proposta de entretenimento que um "Tower Defense" que está em alta no Kongregate.com. Mas isso não quer dizer que ele não possa instigar certos grupos de pessoas, desafiá-los, atraí-los (tal como um livro do Kafka, por exemplo, faz para vários amantes da literatura, mas pode ser chatíssimo para alguém que goste apenas de romance policial). Segundo: nem todo jogo precisa sequer ser "divertido". Ele precisa fazer sentido, podendo ser inclusive chocante. Isso já dizia Frasca (2003): não há motivos lógicos que limitem a produção de jogos à produção de entretenimento. Assim como há filmes ou livros que contém assuntos sérios, videogames também podem possuir. O que, deve-se deixar claro, não é uma militância contra jogos divertidos...

Ainda assim, em avaliações em diversos sites e fóruns que debatem jogos, há o estabelecimento de uma noção mais ou menos universal de "bom jogo" e ela, mesmo que aplicada a um "jogo sério" tende a levar em conta o caráter diversão. O que critico nisso é o seguinte: "bom" segundo que parâmetros? "Divertido" para que usuários? O jogo "fracassa" segundo que interpretações? Tomamos essas avaliações como se elas fossem feitas segundo uma cartilha exterior a nós, críticos, que meramente, objetivamente e neutramente aplicamos os preceitos lá contidos e chegamos a conclusões "óbvias".

E aí entro em um assunto espinhoso: normalmente essa cartilha dialoga com a lógica de mercado. Talvez porque os jogos mais conhecidos têm esse apelo, talvez porque grande parte dos críticos seja consumidora/produtora desses jogos. Talvez porque foi assim que aprendemos a ver jogos. Assim, sucesso tende a ser visto como "popularidade". Quando maior o público que joga e gosta de um jogo, mais sucesso ele alcançou. Lógico que há um fator pragmático: se um produtor de jogos, que vive disso, consegue sobreviver por conta de quem compra seus jogos, é de seu interesse fazer jogos que lhe deem retorno financeiro. O que não quer dizer, no entanto, que esse é o único jeito ou "O" jeito certo de fazer jogo.

"Mas o mercado não quer isso!" O mercado também não se interessa pelos saraus literários que faço uma vez por mês com meus colegas (normalmente com os mesmos livros, o que deixaria a lógica do consumo de cabelos em pé). Nem explica porque você ou a Mariazinha possui um diário em que são registrados os bons momentos da sua vida. Nem explica como eu insisto em manter um blog que me consome um tempo que - por conta do mercado - praticamente não possuo. Não se interessa por questões que intrigam e intrigaram as mais diversas sociedades (como: mitos, estética, arte, ética) a não ser como instrumentos secundários para a geração de lucros. O que isso quer dizer?

Mercado não é um fator transcendental para avaliar o que fazemos ou deixamos de fazer na nossa sociedade. Mais que isso: mercado não é sinônimo de sociedade. Se devemos incluir o papel do mercado nas condições de produção, veiculação e aceitação dos jogos, não podemos, por outro lado, reduzir a discussão sobre qualidade ou interesse de jogos por uma análise de "o que o mercado quer". Afinal, o que "o mercado" "pensa" sobre jogos é apenas o modo dominante de se entender jogos. Não o mais importante para todos e muito menos o único.

Isso não deve descambar para um "hermetismo", uma "torre de marfim" ou para uma produção de jogos "cult" quase inacessíveis. Esse não é, inclusive o caso do "Sim Dilema". Ele demanda um esforço de leituras e reflexões que não costuma ser exigido em jogos de entretenimento. Mas que é um tipo de esforço que fazemos, sem reclamar, na vida acadêmica desde a graduação. Isso seleciona um público? Certamente. Do mesmo modo que um jogo como Counter-Strike tem um público particular (do qual não faço parte: não sei se por falta de tempo, agilidade, interesse...)

Em suma: todas as formas de jogo podem ter seu público e seu lugar. E eu tenho o maior interesse que jogos mais "densos" teoricamente e mesmo os gameartes consigam conquistar o seu espaço, a despeito de uma falta de interesse mercadológico em relação a eles.

Referência:
Frasca, G. Videogames: Press left button to dissent, IGDA, 2003.

sexta-feira, 26 de março de 2010

O dilema de Marisa

Marisa tinha um projeto ambicioso, embora simples. Tal projeto envolvia dois fatores: (1) ela queria que as pessoas não morressem por falta de recursos; (2) ela queria viver nesse mundo, não morrer lutando por ele.
Em primeiro lugar, Marisa pensou que, sendo colaborativa ao próximo, além de se aproximar de pessoas que fariam o mesmo, ela daria um grande passo. De fato, os recursos que ela possuía aumentaram e as pessoas com quem ela se relacionava costumeiramente a auxiliavam. Caso alguém não colaborasse, ela não retaliava, apenas deixava de procurá-lo. Assim, enriqueceu. Mas seu projeto foi por água abaixo, pois muitos outros, com quem ela não se relacionava, morreram.
Deram uma nova chance a Marisa. Dessa vez, mais experiente, não foi seletiva em suas trocas. Nisso residia outra espécie de ingenuidade: as pessoas não colaboravam com ela, e seus recursos foram diminuindo. Ao oferecer sempre a outra face, acabou estapeada e sem recursos.
Em sua última chance, restabeleceram seus recursos e a chance de se relacionar com os outros. Agora, colaborava muito, mas retaliava aqueles que não faziam o mesmo. Uma espécie de castigo, que nunca era superior ao tanto que retribuía quando bem recebida. Não bastas
se isso, influenciava as pessoas a agirem desse modo. E informava a todos suas experiências naquele contexto, tentando dar aos outros seu olhar sobre tudo aquilo. No início, Marisa quase sucumbiu. Nesse momento de desespero, aproximou-se de quem mais lhe ajudava. Logo fortalecida, passou a se relacionar com todos. Na comunidade em que vivia, as pessoas sobreviveram e, aos poucos, começaram a colaborar umas com as outras.

Essa narrativa é uma maneira de contar ou reinterpretar a sucessão de acontecimentos de minha trajetória em uma partida do jogo Sim Dilema, desenvolvido por Janos Biro. O jogo em questão consiste em uma simulação baseada no dilema do prisioneiro, mas envolvendo uma complicação um pouco maior (há mais agentes envolvidos) e alguns elementos reguladores, propostos pelo autor, como relações entre recursos, desigualdade e consumo. Sugiro que a leitura do que virá a seguir seja feita após a execução do jogo e de um conhecimento básico sobre o dilema mencionado.



Quando, há muito tempo, comentei "The Free Culture Game", mencionei que era um jogo que operava mais como manifesto do que teoria, alcunha esta usada e divulgada por seu autor. E minha justificativa foi: o jogo encerra possibilidades de ação frente ao problema proposta, tomando a si mesmo como exemplo disso. Ou seja, um apelo persuasivo a agir conforme sugerido. Isso não é um problema, mas me gerou uma inquietação: como um jogo pode operar como uma teoria?

Sim Dilema faz isso. Talvez por isso seja denso. Talvez por isso seja tão pouco (ou nada) comentado, apesar de o autor tê-lo divulgado em inúmeros sites. Já o havia jogado, mas confesso que tive dificuldades, então, de construir sentidos. De operar com o jogo de um modo um pouco além do aleatório. De conseguir transformar minhas ações no programa em narrativas como fiz acima. Para tudo isso ser possível, precisei estudar antes de jogá-lo novamente. Tal como fazemos ao ler um poema, um artigo ou mesmo ver um filme que não entendemos. Depois de tudo isso, retornei ao jogo, ao seu manual e a alguns dos desafios propostos.

O que "Sim Dilema" faz de mais interessante, na minha opinião, é estabelecer uma reflexão sobre uma outra possibilidade de encarar jogos de gerenciamento de recursos. A inquietação do autor, nesse sentido, é clara, como é possível perceber neste comentário, em seu blog. Simula-se e se propõe a discutir, no jogo, noções como "colaboração", "desigualdade", "confiança", "coletividade". Desloca-se a ideia de "sucesso" como vitória de um, subjugando os demais (nesse jogo, isso é fracassar), o que provoca um contra-discurso interessante. E, mais que tudo, apesar de haver alguns "desafios", propostos pelo autor, que direcionam o jogo, sua base é, em si, a modalidade "sandbox", que permite a exploração de vários caminhos e possibilidades.


Obviamente, como toda simulação é uma redução, deve-se "entrar" no argumento do autor para que ele funcione. Não há explicação para o "número mágico" de 400 dias de prazo para manter todos sobrevivendo. Também não se apresentam os pressupostos que sustentam a relação direta entre "quantidade total de recursos" e "consumo diário de recursos". E isso, óbvio, interfere nas reflexões feitas, na sensação de sucesso ou fracasso e assim por diante. Fica a dica para uma próxima versão do jogo: criar, em algum local, um documento procurando explicar as escolhas e os pressupostos que sustentam o jogo (ou pelo menos sugerir que os jogadores entrem em contato com o autor para perguntar sobre isso).

Nos "desafios", é interessante a presença de perguntas, em vez de conclusões (o que, mesmo direcionando a reflexão, não a encerra, como ocorre no "Free Culture Game"). Por outro lado, não há uma consideração que as perguntas feitas e os desafios dependem intrinsicamente da estrutura proposta pelo próprio autor para gerarem resultado. São as escolhas que ele faz na construção do jogo que conduzem aos efeitos. Some-se a isso a recomendação para "mexer o mínimo possível": além de não ser tão precisa (quanto seria esse "mínimo"?), não é justificada (por que essa recomendação é feita?). Isso acabou me levando à ideia de que "deve ser assim para funcionar". Mas são detalhes que não tiram o brilho do projeto.

Como consideração final, eu gostaria de ressaltar que o Sim Dilema ainda tem um grande mérito: assume-se enquanto argumentativo (ou, melhor, como UMA possibilidade de enxergar o mundo). Além de explicar sua fundamentação (dilema do prisioneiro), sua motivação (pensar em um jogo de soma não nula, baseado na teoria dos jogos) está disponível em um site em que o posicionamento do autor é apresentado. Ou seja, podemos debater o argumento, questionar os efeitos do jogo, gerar um debate a partir disso, tal como fazemos com demais artefatos culturais. Não precisamos concordar com o autor (mas somos levados a argumentar para defender nosso ponto de vista, caso isso ocorra).

Assim, o jogo não possui a armadilha encontrada em "blockbusters" como Civilization ou The Sims, que se assumem como "entretenimentos neutros", disseminam-se como "universais" (todas as nações buscam um mesmo objetivo; todas as famílias são alfabetizadas e proprietárias de imóveis) e generalizam noções, sobre os assuntos que abordam, que são locais.