Para prosseguir na discussão sobre o uso da jogabilidade como argumento, é necessário explicitar um pressuposto meu sobre jogo e jogabilidade que não é o mais corrente nem o mais óbvio entre os produtores de jogos nem entre jogadores em geral.
A visão padrão (bem didaticamente resumida) que se tem sobre jogos muitas vezes se limita a considerá-los bons (ou, ainda, a considerá-los "jogos") diante de um conjunto de preceitos "infalíveis". Preceitos que não garantem a qualidade do jogo, mas, se estiverem ausentes, garantem a falta de qualidade, a falta de público e, com isso, seu fracasso. Desde que comecei a me interessar por jogos e procurar entendê-los do ponto de vista de sua criação (embora eu ainda não tenha conseguido criar um, propriamente, pois ainda me faltam parcerias e habilidades fundamentais), encontro manuais, tutorias e "bíblias" de game design que insistem nesse conjunto de itens. Destaco, pela facilidade de compreensão e acesso, esta aqui, desenvolvida por Mark Overmars, como primeiro tutorial para a ferramenta Game Maker.
Meu ponto é: tais documentos são interessantes e certamente auxiliam muitos game designers a pensar tecnicamente na criação de seus jogos. Mas pautar a avaliação de jogos tendo preceitos semelhantes como critério é, ao meu ver, analisar a rica obra de Guimarães Rosa em termos daquelas análises mecânicas de: autor em primeira ou terceira pessoa? Personagens planos ou esféricos? Espaço? Tempo? (Obrigado ao André Renato, de quem "roubei" esse exemplo de uma recente conversa para aplicá-lo aqui). Ou, ainda, fazer um curso técnico de pintura/desenho e achar que ali está a forma para a arte (o que leva a pensar que tudo que não repetir aquela fórmula não é arte, não é bom, não é pintura/desenho).
Em termos de jogos, por absoluta ausência de tradição, imagino, temos os analisado apenas diante de uma análise padrão, torcendo o nariz para pontos fora da curva. Concluindo, é isso que, para mim, faz jogos como Unfair Platformer, I wanna be the guy, Karoshi, entre outros, tão interessante: eles não só dominam a técnica e a linguagem dos jogos como, ao subverter certos padrões (como: o jogo deve ter uma curva de aprendizado adequada; o jogo deve ter um grau de previsibilidade que permita que o jogador aprenda com seus erros) mostram que os recursos técnicos e as convenções estão sempre ali em prol de um efeito tal. E não são mais que isso: recursos e convenções a serem explorados.
Isso tudo para falar de um jogo que, diante de análises mais restritas ou tradicionais nem poderia ser considerado "jogo", mas sim uma "animação interativa" ou algo do tipo: é o Chuck Norris Game, produzido pelo Gabriel Moura, brasileiro de Niterói. Na análise mecânica acima apontada provavelmente teríamos como falar que ele "peca pela total ausência do desafio, tornando-se monótono, entediante, e não seduzindo o jogador".
Mas não é o que vejo. Para mim, o jogo em questão exemplifica bem a ideia de que a jogabilidade deve servir para gerar certos efeitos no jogador, ainda que, para isso, precise se desvincular de conceitos pré-determinados e pasteurizados como "fluência", "desafio", "reincidência", etc. Fazendo um óbvio intertexto com o altamente difundido meme "Chuck Norris Facts", o jogo tem a felicidade de conseguir materializar uma piada que tem sua graça no meio escrito e digital em um jogo que mantém sua graça. Ou, ainda: uma brincadeira que utiliza certos tipos de recursos (penso na escrita alfabética, aberta à contribuições coletivas e anônimas, usando, em sua materialidade, frases declarativas no presente, o que garante um efeito de verdade e de generalidade) e facilidades (penso na capacidade de disseminação das mídias digitais) em outra brincadeira que faz usos nada ingênuos de técnicas particulares da projeção de jogos digitais.
Em poucas linhas, já está claro, óbvio e batido dentro dos estudos da linguagem que escolher entre: "Eu acho que Chuck Norris faria tal coisa" e "Chuck Norris faz tal coisa" muda o efeito discursivo e o caminho argumentativo na escrita. Dentro dos estudos dos jogos, igualmente, deve-se perceber que as escolhas feitas no design também possuem efeitos particulares: qual o efeito de observar que nada fere nem abala Chuck Norris como personagem principal de um jogo, quando, tipicamente, mesmo o mais valente dos personagens (Duke Nukem? Mario? Homem-Aranha?) está sujeito a ser derrotado? Que seu Roundhouse Kick mata ou elimina qualquer um que esteja em seu caminho, desde "minions" tradicionais como os do Sonic ou do Mario até personagens tidos como carismáticos e com vocação para o heroísmo como Ryu? Que a contagem de pontos é altamente generosa, que as vidas são infinitas (embora ele nem precisa usá-las) e que todas as fases são passadas com o selo "perfect" de qualidade (premiação que normalmente só é dada ao jogador mais abalizado)? Em suma: qual o efeito de perceber que para comandar Chuck Norris não é preciso ser um bom jogador, que a personagem é tão completa que não precisa da ajuda da sua habilidade, jogador, tão ansioso para mostrar ao universo do jogo como você é hábil, inteligente e estratégico?
Disso se pode tirar algumas reflexões, as quais podem ser expandidas em discussões futuras. Em primeiro lugar, a "formalização" e as regras de composição dos jogos, que pode ser benéfica ou até essencial em alguns casos para auxiliar projetistas em questões técnicas não pode ser vista como parâmetro para análise de jogos, sob pena de "fechar a visão" para iniciativas criativas e engenhosas. Segundo, o tema da brincadeira é o mesmo do presente no Chuck Norris Facts, e inclusive é obviamente o que motivou a criação do jogo, mas certamente os recursos utilizados em cada caso (escrita em meio digital x jogo) geram efeitos diferentes. E isso quer dizer que não há apenas a "aplicação" de uma ideia a um jogo. A mudança de recursos primários (escrita para jogabilidade em ambiente multimodal) pressupõe um trabalho criativo por si só, que é o de pensar em como se apropriar das convenções do meio para fazer algo com sentido. Fazer um jogo com criticidade, então, parece pressupor, logo de início, analisar alguns possíveis efeitos argumentativos de sua jogabilidade naquele contexto.
A visão padrão (bem didaticamente resumida) que se tem sobre jogos muitas vezes se limita a considerá-los bons (ou, ainda, a considerá-los "jogos") diante de um conjunto de preceitos "infalíveis". Preceitos que não garantem a qualidade do jogo, mas, se estiverem ausentes, garantem a falta de qualidade, a falta de público e, com isso, seu fracasso. Desde que comecei a me interessar por jogos e procurar entendê-los do ponto de vista de sua criação (embora eu ainda não tenha conseguido criar um, propriamente, pois ainda me faltam parcerias e habilidades fundamentais), encontro manuais, tutorias e "bíblias" de game design que insistem nesse conjunto de itens. Destaco, pela facilidade de compreensão e acesso, esta aqui, desenvolvida por Mark Overmars, como primeiro tutorial para a ferramenta Game Maker.
Meu ponto é: tais documentos são interessantes e certamente auxiliam muitos game designers a pensar tecnicamente na criação de seus jogos. Mas pautar a avaliação de jogos tendo preceitos semelhantes como critério é, ao meu ver, analisar a rica obra de Guimarães Rosa em termos daquelas análises mecânicas de: autor em primeira ou terceira pessoa? Personagens planos ou esféricos? Espaço? Tempo? (Obrigado ao André Renato, de quem "roubei" esse exemplo de uma recente conversa para aplicá-lo aqui). Ou, ainda, fazer um curso técnico de pintura/desenho e achar que ali está a forma para a arte (o que leva a pensar que tudo que não repetir aquela fórmula não é arte, não é bom, não é pintura/desenho).
Em termos de jogos, por absoluta ausência de tradição, imagino, temos os analisado apenas diante de uma análise padrão, torcendo o nariz para pontos fora da curva. Concluindo, é isso que, para mim, faz jogos como Unfair Platformer, I wanna be the guy, Karoshi, entre outros, tão interessante: eles não só dominam a técnica e a linguagem dos jogos como, ao subverter certos padrões (como: o jogo deve ter uma curva de aprendizado adequada; o jogo deve ter um grau de previsibilidade que permita que o jogador aprenda com seus erros) mostram que os recursos técnicos e as convenções estão sempre ali em prol de um efeito tal. E não são mais que isso: recursos e convenções a serem explorados.
Isso tudo para falar de um jogo que, diante de análises mais restritas ou tradicionais nem poderia ser considerado "jogo", mas sim uma "animação interativa" ou algo do tipo: é o Chuck Norris Game, produzido pelo Gabriel Moura, brasileiro de Niterói. Na análise mecânica acima apontada provavelmente teríamos como falar que ele "peca pela total ausência do desafio, tornando-se monótono, entediante, e não seduzindo o jogador".
Mas não é o que vejo. Para mim, o jogo em questão exemplifica bem a ideia de que a jogabilidade deve servir para gerar certos efeitos no jogador, ainda que, para isso, precise se desvincular de conceitos pré-determinados e pasteurizados como "fluência", "desafio", "reincidência", etc. Fazendo um óbvio intertexto com o altamente difundido meme "Chuck Norris Facts", o jogo tem a felicidade de conseguir materializar uma piada que tem sua graça no meio escrito e digital em um jogo que mantém sua graça. Ou, ainda: uma brincadeira que utiliza certos tipos de recursos (penso na escrita alfabética, aberta à contribuições coletivas e anônimas, usando, em sua materialidade, frases declarativas no presente, o que garante um efeito de verdade e de generalidade) e facilidades (penso na capacidade de disseminação das mídias digitais) em outra brincadeira que faz usos nada ingênuos de técnicas particulares da projeção de jogos digitais.
Em poucas linhas, já está claro, óbvio e batido dentro dos estudos da linguagem que escolher entre: "Eu acho que Chuck Norris faria tal coisa" e "Chuck Norris faz tal coisa" muda o efeito discursivo e o caminho argumentativo na escrita. Dentro dos estudos dos jogos, igualmente, deve-se perceber que as escolhas feitas no design também possuem efeitos particulares: qual o efeito de observar que nada fere nem abala Chuck Norris como personagem principal de um jogo, quando, tipicamente, mesmo o mais valente dos personagens (Duke Nukem? Mario? Homem-Aranha?) está sujeito a ser derrotado? Que seu Roundhouse Kick mata ou elimina qualquer um que esteja em seu caminho, desde "minions" tradicionais como os do Sonic ou do Mario até personagens tidos como carismáticos e com vocação para o heroísmo como Ryu? Que a contagem de pontos é altamente generosa, que as vidas são infinitas (embora ele nem precisa usá-las) e que todas as fases são passadas com o selo "perfect" de qualidade (premiação que normalmente só é dada ao jogador mais abalizado)? Em suma: qual o efeito de perceber que para comandar Chuck Norris não é preciso ser um bom jogador, que a personagem é tão completa que não precisa da ajuda da sua habilidade, jogador, tão ansioso para mostrar ao universo do jogo como você é hábil, inteligente e estratégico?
Disso se pode tirar algumas reflexões, as quais podem ser expandidas em discussões futuras. Em primeiro lugar, a "formalização" e as regras de composição dos jogos, que pode ser benéfica ou até essencial em alguns casos para auxiliar projetistas em questões técnicas não pode ser vista como parâmetro para análise de jogos, sob pena de "fechar a visão" para iniciativas criativas e engenhosas. Segundo, o tema da brincadeira é o mesmo do presente no Chuck Norris Facts, e inclusive é obviamente o que motivou a criação do jogo, mas certamente os recursos utilizados em cada caso (escrita em meio digital x jogo) geram efeitos diferentes. E isso quer dizer que não há apenas a "aplicação" de uma ideia a um jogo. A mudança de recursos primários (escrita para jogabilidade em ambiente multimodal) pressupõe um trabalho criativo por si só, que é o de pensar em como se apropriar das convenções do meio para fazer algo com sentido. Fazer um jogo com criticidade, então, parece pressupor, logo de início, analisar alguns possíveis efeitos argumentativos de sua jogabilidade naquele contexto.
Um comentário:
De fato, incomoda um pouco que osgames, por falta de tradição, ainda sejam vistos e por vezes analisados de forma tão mecanicista, baseada em forminhas. Conheço bem esse tipo de Manual.
E realmente os critérios artisticos são bem mais amplos. Não querendo fecha-los ou dizer "Eu sei o que é Arte", mas certamente a visão que mais me agrada é a da Arte como Linguagem Formal. Formal no sentido de Organização de formas, sejam sons, cores, códigos, o que for. E não há regras pra isso a não ser as que o próprio meio impõe. E essas regras "Naturais" do meio a ser trabalhado (e não as regras artificiais por convensão de manuais) é que são os delimitadores daquela linguagem e onde se manifesta o processo criativo, pois entendo criar como Formar. Dar forma.
Talvez tenha sido arrogante no Post anterior (que respondi antes de ler esse), quando falo que certos Game-arte se esgotam na idéia. De fato, já um processo para cria-los que, simplentemte por eles existirem, já não é mais apenas idéia.
E interessante que essa análise tenha sido feita em cima de um jogo que não tem pretensões de ser "Game Art". Está mais para uma piada jogável. Mas trata-se de um fazer humano em que ouve um processo, uma necessidade interior de se fazer. e a Linguagem formal é uma espécie de linguagem natural da Humanidade, que nem precisaria da palavra Arte para que esse processo ocorresse.
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