Falar sobre indícios da instituição da cultura gamer é algo um tanto, digamos, complexo. Primeiro, porque haverá quem (não sem razão) apontará o fato de que a tal "cultura gamer" está aí desde os primeiros videogames, dado que certas práticas sociais passaram a ser permeadas por esse uso. Em segundo, porque falar de cultura é sempre pisar em ovos - o termo possui uma pluralidade de acepções que, muitas vezes, mesmo em contextos menos amplos, pode causar discordâncias ou desentendimentos. Mas o tema parece relevante, para mim, quando as próprias manifestações do mundo gamer começam a utilizar referências do próprio meio no desenvolvimento dos seus jogos, que é o que se observou em posts anteriores (1,2) sobre jogos que, entendendo o gênero, modificam-no ou subvertem-no.
Assim, num arremedo de Ginzburg, procuro trazer as considerações sobre o assunto através de uma busca indiciária e - puxando sardinha para a área em que costumeiramente atuo - com o foco na linguagem. Peço desculpas por essa longa introdução sobre o assunto, dado que já havia falado que tentaria ser menos acadêmico nesse blog. Contudo, há coisas que, se não explicadas, acabam por dar coceira na gente. =D
Buscando na memória, é possível perceber que a grande tendência dos jogos, em momentos passados, era a de trazer outros mundos e outros contextos para aquele universo. Para isso, no entanto, o esforço realizado era no sentido de esconder, ao máximo, os limites e as convenções do jogo digital, procurando passar a idéia de que o jogo traduzia, ao máximo, a "realidade". Um exemplo: um "Fifa 94" (bem como um WE atual) quer "apagar", ao máximo, suas características de simulador, tentando buscar um "efeito de realidade" em seu jogador, uma idéia de que aquela simulação corresponde, tanto quanto possível, a um jogo de futebol de verdade. Lógico que, com isso, o contrato entre jogo e jogador tem que fazer vista grossa a muitas coisas - ninguém pode ser onze pessoas num campo de futebol, escalar o time e a formação, tudo ao mesmo tempo; futebol é um esporte de habilidade com os pés e não com os dedos da mão (no joystick); o boleiro sempre vai ver o jogo de sua perspectiva, impossível "mudar de câmera" ou ver o jogo acontecendo como se fosse numa TV, entre outros. Aliás, nesses tipos de jogos que se pretendem "reais", é sempre curioso ver a "evolução" de versões mais antigas para as mais novas - ela sempre denuncia que acreditávamos em uma grande mentira quando acatávamos que o jogo "traduzia a realidade". Quem não ouviu nunca, por exemplo, que a nova versão do jogo "x" estava "muito mais real"?
Outros jogos, apesar de não fazerem essa ponte entre práticas já estabelecidas fora desse universo (esportes, simuladores de vôo, etc.) calcavam-se, muitas vezes, em diretrizes e convenções de seus gêneros, naturalizando-as. Quem joga Sonic, joga Mário, por exemplo. Quem joga os dois, ou outros de "Plataforma" não terá dificuldade em migrar para "Beat-'em-ups como Double Dragon, Golden Axe ou Streets of Rage. Apesar das diferenças, há padrões mais ou menos repetidos - menu, opções, "continues", "vidas". As funções também não mudam muito - pular, atacar, especiais, etc. Mas não era usual questionar sobre a "espessura" dos jogos, esses elementos que os marcavam como videogames e não como qualquer outra coisa - filmes, jogos de tabuleiro, livro-jogo, etc.
Quando falo em espessura, quero dizer os pressupostos que o jogador assimila e acata antes de jogar. Talvez o mais comum que perdurou praticamente intocável até o surgimento do Wii é o de que apertar botões pode corresponder a realizar ações. ("A" ataca, "B" pula, "C" especial. Hein?) Um segundo, tão inverossímil quanto esse em qualquer outro meio é o de que um personagem pode ter mais de uma vida (queria ver se ninguém iria esbravejar ao ver um filme em que o cara morre umas três vezes e, como pena para isso, recomeça sua saga em um checkpoint qualquer). Isso sem contar a naturalização das "tramas" dos jogos, levando à sedimentação de certos gêneros. (Há algo mais próprio de videogames - ou fliperamas - que falar em "chefe de fase" e "chefão final", ou "chefe de jogo"?)
E onde quero chegar com isso? Bem, essa contextualização mostra que, em muitos casos, e principalmente, num tempo anterior ao nosso, a pretensão de realismo - criticado ainda em 2006 por Roger Tavares e Felipe Neves - não evidenciou como deveria o quanto o meio "videogame" tinha suas próprias convenções, tanto oriundas de seus limites e possibilidades (o que um jogo digital nos possibilita não é a mesmo coisa que um romance e vice-versa), quanto a partir de certas reiterações e reafirmações de jogos, que acabaram criando alguns "gêneros", como beat'em'up, platformer, tycoon, RTS, FPS, etc... hoje, muitos autores de jogos não só tomaram consciência dessa espessura dos jogos como começam a incorporá-la (em grande parte de maneira irônica, ou engraçada) na própria confecção do jogo, criando assim, uma metalinguagem do jogo, o que, parece-me, é a afirmação da consciência da cultura gamer pelos agentes nela inseridos.
(em breve, a parte II, onde procuro comentar algumas dessas manifestações vistas atualmente).
Assim, num arremedo de Ginzburg, procuro trazer as considerações sobre o assunto através de uma busca indiciária e - puxando sardinha para a área em que costumeiramente atuo - com o foco na linguagem. Peço desculpas por essa longa introdução sobre o assunto, dado que já havia falado que tentaria ser menos acadêmico nesse blog. Contudo, há coisas que, se não explicadas, acabam por dar coceira na gente. =D
Buscando na memória, é possível perceber que a grande tendência dos jogos, em momentos passados, era a de trazer outros mundos e outros contextos para aquele universo. Para isso, no entanto, o esforço realizado era no sentido de esconder, ao máximo, os limites e as convenções do jogo digital, procurando passar a idéia de que o jogo traduzia, ao máximo, a "realidade". Um exemplo: um "Fifa 94" (bem como um WE atual) quer "apagar", ao máximo, suas características de simulador, tentando buscar um "efeito de realidade" em seu jogador, uma idéia de que aquela simulação corresponde, tanto quanto possível, a um jogo de futebol de verdade. Lógico que, com isso, o contrato entre jogo e jogador tem que fazer vista grossa a muitas coisas - ninguém pode ser onze pessoas num campo de futebol, escalar o time e a formação, tudo ao mesmo tempo; futebol é um esporte de habilidade com os pés e não com os dedos da mão (no joystick); o boleiro sempre vai ver o jogo de sua perspectiva, impossível "mudar de câmera" ou ver o jogo acontecendo como se fosse numa TV, entre outros. Aliás, nesses tipos de jogos que se pretendem "reais", é sempre curioso ver a "evolução" de versões mais antigas para as mais novas - ela sempre denuncia que acreditávamos em uma grande mentira quando acatávamos que o jogo "traduzia a realidade". Quem não ouviu nunca, por exemplo, que a nova versão do jogo "x" estava "muito mais real"?
Outros jogos, apesar de não fazerem essa ponte entre práticas já estabelecidas fora desse universo (esportes, simuladores de vôo, etc.) calcavam-se, muitas vezes, em diretrizes e convenções de seus gêneros, naturalizando-as. Quem joga Sonic, joga Mário, por exemplo. Quem joga os dois, ou outros de "Plataforma" não terá dificuldade em migrar para "Beat-'em-ups como Double Dragon, Golden Axe ou Streets of Rage. Apesar das diferenças, há padrões mais ou menos repetidos - menu, opções, "continues", "vidas". As funções também não mudam muito - pular, atacar, especiais, etc. Mas não era usual questionar sobre a "espessura" dos jogos, esses elementos que os marcavam como videogames e não como qualquer outra coisa - filmes, jogos de tabuleiro, livro-jogo, etc.
Quando falo em espessura, quero dizer os pressupostos que o jogador assimila e acata antes de jogar. Talvez o mais comum que perdurou praticamente intocável até o surgimento do Wii é o de que apertar botões pode corresponder a realizar ações. ("A" ataca, "B" pula, "C" especial. Hein?) Um segundo, tão inverossímil quanto esse em qualquer outro meio é o de que um personagem pode ter mais de uma vida (queria ver se ninguém iria esbravejar ao ver um filme em que o cara morre umas três vezes e, como pena para isso, recomeça sua saga em um checkpoint qualquer). Isso sem contar a naturalização das "tramas" dos jogos, levando à sedimentação de certos gêneros. (Há algo mais próprio de videogames - ou fliperamas - que falar em "chefe de fase" e "chefão final", ou "chefe de jogo"?)
E onde quero chegar com isso? Bem, essa contextualização mostra que, em muitos casos, e principalmente, num tempo anterior ao nosso, a pretensão de realismo - criticado ainda em 2006 por Roger Tavares e Felipe Neves - não evidenciou como deveria o quanto o meio "videogame" tinha suas próprias convenções, tanto oriundas de seus limites e possibilidades (o que um jogo digital nos possibilita não é a mesmo coisa que um romance e vice-versa), quanto a partir de certas reiterações e reafirmações de jogos, que acabaram criando alguns "gêneros", como beat'em'up, platformer, tycoon, RTS, FPS, etc... hoje, muitos autores de jogos não só tomaram consciência dessa espessura dos jogos como começam a incorporá-la (em grande parte de maneira irônica, ou engraçada) na própria confecção do jogo, criando assim, uma metalinguagem do jogo, o que, parece-me, é a afirmação da consciência da cultura gamer pelos agentes nela inseridos.
(em breve, a parte II, onde procuro comentar algumas dessas manifestações vistas atualmente).
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