sábado, 27 de setembro de 2008

A instituição da cultura gamer II: exemplos e apontamentos.

Depois de um longo hiato com relação ao primeiro post sobre esse assunto, tento retomar a idéia.

Parece que o universo gamer permite-se emancipado (perante ele e perante as mídias parelhas) quanto mais assume como próprios certos temas e, mais que isso, cria uma regularidade que possibilita, inclusive, subversões internas, desconstruções da própria lógica prevista nos jogos. Em outras palavras, quando o óbvio aparece no jogar e, principalmente, quando o óbvio começa a ser desconstruído, vê-se que o jogo já tem parâmetros e lógicas próprias. Nisso está o sentido de jogos como o Karoshi ou os jogos IWBTG e The Unfair Platformer.

No Brasil, embora não haja uma sistematização (seja teórica, seja do ponto de vista da produção) de jogos que vão nessa linha, ainda conseguimos encontrar alguns exemplos. Janos Biro, por exemplo, parte de lógicas compartilhadas pelos gamers para criar subversivo "Diacho". Em um jogo bastante simples (e que, à primeira vista, poderia passar como apenas mais uma tentativa de expressão por meio do jogo), vê-se uma sátira ao jogo Diablo (e, com isso, aos RPGs em geral) e um "detóurnement", ou seja, um deslocamento de sentido do que era para ser um RPG em tais circunstâncias. A simplicidade do próprio jogo é satirizada pelo autor e é incorporada como elemento do jogo quando, ao apresentá-lo, Janos convida o jogador a explorar "o mundo de Diacho" e descobrir "porque ele tem gráficos tão ruins!".

O (já citado, no post anterior) trabalho de Roger Tavares e Felipe Neves, "Realidades Alternativas", também podem explicitar esse processo de naturalização da lógica do jogo e, mais, de uma tentativa de desnaturalização a partir das convenções já estabelecidas dos gêneros de "1st person shooter". Os autores promovem 3 modificações no difundido Counter Strike de modo a retrabalhar o conceito de "realidade" dentro do universo gamer. Na primeira, a "SinCity", os autores aproximam a esfera do jogo a uma esfera de quadrinhos, estilizada com traços marcadamente divergentes a uma estética realista. No segundo, "Blind", altera-se a iluminação do jogo, promovendo uma outra esfera, completamente diferente e não prevista. Ora, sabe-se que o jogo de luz e sombra de um jogo nesse estilo cria a esfera considerada "adequada" pelos produtores e conduz o jogador aos momentos que seriam de maior ou menor tensão. Ao suberver essa lógica, evidencia que mesmo a imersão que o jogador tem em um jogo (e os sentimentos dela advindos) não passa de construtos calcados em convenções.

A terceira (e a mais divertida, imagino) é a subversão de um dos pilares de um jogo: o som. Raríssimos são os jogos (excetuando-se o mundo dos casual games, talvez) em que o som não exerça papel fundamental. Creio que apenas os "managers" de maneira geral tem o som como "acréscimo" ao jogo, e não como elemento que oferece pistas e respostas ao jogador. Ao trocarem todas as comunicações por sons aleatórios, os autores despertam a ênfase em outras habilidades, além de evidenciar que a natureza multimodal dos jogos (integração de várias modalidades na construção de sentido) é a base de sua construção. São esses três casos em que a idéia de que um jogo possa ser transparente é completamente minada, o que reforça a idéia dessa instituição de uma cultura gamer, em que as convenções se tornam cada vez mais próprias e específicas do meio.

Podemos ir além. Qualquer pessoa que dedique um tempo de sua vida aos jogos pode se deparar como o jogo "Revenge of the Stickmen" e entender sua brincadeira, sua ironia quando assume, como história de fundo, a seguinte narrativa:



Bem, logicamente os "bonecos-palito" não foram criados no mundo dos jogos. Porém, nesse universo eles ganham uma relativa importância. Sendo mais abrangente, até se pode atribuir o surgimento dos bonecos-palito no mundo dos jogos no Atari e em similares. Isso, no entanto, parece-me uma interpretação errônea. Afinal, o intuito não era "estilizar" a silhueta humana. O fato é que era impossível (por limitações técnicas) que, mesmo o melhor artista desenhasse de maneira elaborada.

Assim, podemos pensar que os bonecos-palito Vêm, a princípio, como animações (quem nunca viu a interessantíssima série Xiao Xiao?) e são apropriadas por produtores de jogos. Por um lado, é um recurso interessante para quem não tem um artista gráfico para desenhar, por outro, pode ser visto como uma questão de estilo, mesmo. Dado que os tais bonecos-palito, apropriados por produtores de jogos, passaram a ser protagonistas das mais diversas missões, completa-se assim o sentido da brincadeira proposta por "Revenge of the Stickmen" (não por acaso, em uma linha até batido dos casual games, de "tower defense").

Em suma, se há o reconhecível em "tower defense", se há possibilidade de entendimento da brincadeira em "Revenge of the Stickmen", é porque já há um conjunto de pressupostos mais ou menos compartilhados por uma comunidade sobre aqueles campos semânticos - "bonecos-palito" e jogos do gênero. Isso é indício de uma sistematização e uma lógica própria de uma comunidade que vê aqueles clichês e aquelas recorrências em suas práticas cotidianas. Não tendo os jogos que funcionar a base de empréstimos de outros meios e de outras lógicas, dado que seus interlocutores começam a retroalimentar aquele universo, evidencia-se essa cultura gamer instituída.

O legal disso tudo (para mim, ao menos) é que, dentro do estabelecido há o campo fértil em que se pode executar a subversão. Quando iniciei meu mestrado, apenas pensava que o jogo poderia servir, feito um instrumento, para a reflexão social crítica alheia a ele. Hoje, já se mostra muito mais claro que um dos caminhos mais intrigantes de se estabelecer essa "crise" é questionar a própria naturalização dessa cultura gamer.

4 comentários:

On_Off disse...

Rapaz! Isso tem Muito a ver com a maneira como Defendo Jogos enquanto modalidade artística! Cada Arte é uma linguagem com suas características próprias, e eu fico meio insatisfeito com esse pensamento de só valorizar o jogo ou quando ele se aproxima do Real ou quando adquire respaldo ancorado em outra arte como a Literatura e o Cinema.

Amei esse Blog! Sou alguém que recebeu a mensagem solta dentro de uma Garrafa, e estou feliz com isso!

Henrique Magnani disse...

Pois é. E embora isso já esteja bem estabelecido em vários outros meios, o videogame ainda parece sofrer com essa auto-afirmação. Talvez por conta de ser mais difícil de se aproximar daquela verossimilhança que, hoje, consideramos como se fosse "real".

Tem até um artigo famoso do famoso Frasca que, ao pregar a inclusão de questões cotidianas concretas no jogos, parece acabar preconizando essa espécie de realismo, mas em um campo temático.

O nome é algo como "As pessoas preferem vovós a trolls", não me recordo direito no momento.

Bem, eu não acredito no "real" e "na verdade", então sou suspeito para depor contra o "realismo"...

Henrique Magnani disse...

PS: Fico feliz que tenha gostado do blog. Saber disso dá sempre um ânimo para a gente parar um pouco para se dedicar a esse tipo de trabalho "voluntário". ;)

On_Off disse...

Lembrei-me de outro aspecto que me dá coceira... Algo que também me deixa balançado é essa ideia de que algo só é inteligente ou pra pessoas inteligentes quando há coisas como "críticas" e questionamentos sociais. Com minha abordagem é artística costumo perceber mais pelo plano existencial, que ultrapassa uma mera crítica a um determinado assunto. Isso da Linguagem questionar ela própria e subverte-la em si pode dizer muita coisa, mesmo sem a proposital intenção de dizer algo ou fazer uma crítica. No fazer artístico, a maneira de se fazer algo muitas vezes trás por si muitas mensagens. Coisas são ditas (não-verbalmente) durante o ato de se fazer algo de determinada maneira. Principalmente quando esse fazer é sincero. Há uma compreensão de mundo por trás!
Não sei qual sua compreensão de "Real" ou "verdade", mas não estou necessariamente depondo contra o Realismo. Deponho contra o desrespeito ao "não-Realista". As obras são reais por si, elas existem (caso contrário não seriam jogadas). Não como imitação mas como algo consumado e existente que tem valor por si. Enfim, adoro a Cultura Gamer, e gosto do fato dela ter autonomia, questionada, subvertida ou não!